Uma de minhas primeiras paixões dentro do universo literário, mais precisamente dentro do gênero poesia, foi Fernando Pessoa e seus heterônimos. Esse português natural de Lisboa, nascido a 13 de junho de 1888, foi além de poeta, filósofo, ensaísta, dramaturgo, entre outras proezas. Tal como nos informa sua biografia, sua poesia é lírica e nacionalista voltada a temas tradicionais portugueses, como também subjetiva, reflexiva sobre seu "eu profundo".
Biografia Fernando Pessoa
Sempre me encantou as possibilidades que a arte proporciona, e as palavras com seus arranjos me fisgou desde cedo. Essa paixão inebriante foi aumentando com o tempo e com as perspectivas libertárias que foram se afirmando diante das descobertas reveladas.
Tabacaria
Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada. À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
Janelas do meu quarto, Do meu quarto de um dos milhões do mundo. que ninguém sabe quem é ( E se soubessem quem é, o que saberiam?), Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente, Para uma rua inacessível a todos os pensamentos, Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa, Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres, Com a morte a por umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens, Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.
Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade. Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer, E não tivesse mais irmandade com as coisas Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada De dentro da minha cabeça, E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.
Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu. Estou hoje dividido entre a lealdade que devo À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fora, E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.
Falhei em tudo. Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada. A aprendizagem que me deram, Desci dela pela janela das traseiras da casa.
Fernando Pessoa através de sua genialidade consagrou-se como um dos mais importantes poetas da língua portuguesa, e principal representante do Modernismo português. Seu "Livro do Desassossego", escrito sob o heterônimo de Bernardo Soares, um ajudante de guarda-livros (profissional contábil) é considerada uma obra-prima, próxima de uma prosa poética.
Há em Lisboa um pequeno número de restaurantes ou casas de pasto [em] que, sobre uma loja com feitio de taberna decente se ergue uma sobreloja com uma feição pesada e caseira de restaurante de vila sem comboios. Nessas sobrelojas, salvo ao domingo pouco freqüentadas, é freqüente encontrarem-se tipos curiosos, caras sem interesse, uma série de apartes na vida.
O desejo de sossego e a conveniência de preços levaram-me, em um período da minha vida, a ser freqüente em uma sobreloja dessas. Sucedia que quando calhava jantar pelas sete horas quase sempre encontrava um indivíduo cujo aspecto, não me interessando a princípio, pouco a pouco passou a interessar-me. (...)
Vamos mergulhar nesse universo enriquecedor de Fernando Pessoa e seus vários "eus" literários, e experimentar sensações e emoções que transcendem a concepção pré-determinada que temos das coisas, pessoas, e de nossa própria existência.
"O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente."
Olhar vago, mente dispersa; seu semblante nada dizia. Lá fora o caos reinava, o mundo louco corria, em chamas a terra ardia, mas isso importava? Sussurros doces de algum lugar brotavam, alimentando brandamente seu espírito silenciado. Os passos temiam perseguição, mas a alma dizia "escute seu coração". Isso lhe era o bastante. Render-se aos apelos da sua voz interior distinguia-se como a escolha certeira. E assim a liberdade do ser era conquistada, para se ser quem verdadeiramente é.
O céu está claro, e amanhã os medos não serão mais importantes, e todas as expectativas de hoje serão frutos doces à beira da morte, porque só o presente é eterno. A carne perecerá, transformações e mudanças ocorrerão, e apenas a alma imortal sentará no penhasco da ilusão e dirá: - Eu venci, agora é minha vez.
Minhas pálpebras são cortinas azuis com bordas de cetim chamuscadas em repouso. Meu estômago revida cada golpe com fama de touro ferido, velho e cansado. Eu insisto, ainda não me tens em pedaços. Solavancos e saltos, espasmos, sou cega e surda, confusa e alheia à matrix. Eu ainda aguento... em desespero terreno. Lucidez incerta, sois rasteira e replicante, pérfida e doentia. Dias de verdades e mentiras, dias sagrados e profanados. A vida ao avesso nos faz sangrar; lentamente... sadicamente... inclemente. Rasga tudo dilacerando teu ser imortal que se refaz sobre uma carcaça estúpida e ingrata. Saia enquanto ainda te vejo! Talvez haja tempo caso queiras fugir. A fumaça ainda não me sufocou, posso lhe acobertar caso tenhas amor para semear. Eu sei que tens! Sinto teu sangue irrigando a carne que ainda tem vida em meio à escuridão. Não confio mais na minha própria razão, apenas me guio pela crença na Terra Prometida em seu estado inegável.
As batalhas queimam em oração mesmo quando não há mais sentido para a vitória ou derrota. Meus passos pisam em terra de almas escravas devastadas e lançadas em seu próprio inferno. Somos animais ébrios suplicando pelo pão. Eu insisto, ainda não me tens em pedaços. Existências simultâneas chocam-se como nêutrons em fissão nuclear. Só precisamos amar... mas isso não parece suficiente quando não queremos nos desvencilhar do caos que instalamos. Não sei mais o que estou enxergando. Sigo sem pressa até achar um mundo sem enganos.
segunda-feira, 2 de novembro de 2015
Hoje vou postar dois textos, que muito me agradam, de um colega do Diários de Mochila, o literato Mario Rodrigues (o mesmo que me apresentou o blog!). Mais textos de sua autoria podem ser conferidos em suas colunas Fragmentos de uma Quase novela de cotidiano e Detritos de memória.
Vamos lá alimentar a mente e a alma a fim de cultivar terreno fértil para dar vazão à criatividade! ;)
Entre duas criaturas
O descontentamento, as soluções pontuais, por exemplo, olhar pro lado e espiar a imagem estranha de uma então ideia fixa: a chamada moça inominável surgiria dos lábios marcantes de uma amiga da faculdade; era um absurdo (agora me concentro neste absurdo, uma imagem gravada numa caminhada matinal por um bosque da Universidade E***). Um absurdo histórico a revoada súbita de pássaros acima de nossas cabeças! Eu me apurava mentalmente, negava a ideia original, só podia ser… Não! A moça inominável era a moça inominável e a minha amiga da faculdade era a minha amiga da faculdade. A moça inominável, a amiga da faculdade, a amiga da faculdade, a moça inominável, a elevação de uma dúvida, uma confusão de ânimos.
Embora a face de uma lembrasse a face da outra, eu teimava em afirmar didaticamente: a minha moça inominável era a moça inominável e a minha amiga da faculdade era a amiga da faculdade. Pra ser mais franco ainda, meus olhos passaram naquele tempo a falar difícil pacas, por amar as duas; obsessivamente, amava as duas, a da ficção e a da não ficção.
Na realidade, ambas eram (e não sei até que ponto é possível aqui prezar por tais existências) duas faces de uma moeda só, uma moeda de valor fora de circulação no mercado e só existente em minha cabeça?
Até hoje não consigo explicar tal acontecimento (não há referências para justificar nesta passagem).
Ainda na época, eu repisava: não sei se amo a moça inominável, não sei se amo a amiga da faculdade, ainda não sei quem eu amo mais; entre as duas, (arriscava-me!) acho que sou mais o amor que as unem a mim – tão bonitinho esse amor! (Nesta imagem declaratória, desconfio que se trata de amor inventado, como cantava Cazuza.)
Para entendedores
Objeto de pressões inúmeras de todos os lados, cantos e recantos; alvo de tiroteios simbólicos de interesses alheios, escusos ou legítimos; abajur sem lâmpada dos ditos indefesos, das manias e aflições; uma figura sem decência etc. etc.
O que mais tagarelar exatamente da pele do próprio repórter genérico, uma espécie de autorretrato de infelicidade?
Pra ser franco, se eu escancarasse um 1/3 do que eu gostaria de escancarar sobre os bastidores da atividade jornalística – ao longo de um dispensável tempo de trabalho –, iriam me tomar por um sujeito extremamente fora do comum e contra o ser humano. (Como se eu já não o fosse um aposentado das pequenas redações.)
Não posso dizer exatamente? Pois é o que mais se reproduz no dia a dia.
Sigilo de fonte? Sem essa. 95% do chamado sigilo de fonte é omissão de mau-caratismos, leviandades, vaidades descontroladas, interesses escusos, proselitismos, atos subservientes e… e… e…
Sem ambição pra fazer fortuna fácil e o jogo matreiro dos sistematizadores de posteridades, atiro-me pra situação agora há pouco suspensa no ar:
– A falta de saída, o confronto contra o mundo, (quase sussurrando…) um patético ponto de vista à margem da história das santas civilizações.
Fico super feliz em anunciar que a partir de agora colaboro no site Diários de Mochila com a coluna Papo Nada Sério?! Convido aos amantes das palavras conferir não só os meus textos, mas os dessa galera super talentosa do Diários! ;) Estreei com a poesia Escolhas... bora conferir?!
Abaixo segue um conto inspirado na concepção de que o universo é regido pelas forças masculina e feminina (quem sabe?!) tanto harmoniosamente quanto caoticamente. Fiquem com A Origem.
A origem
Essa é uma
história de Amor. E ódio. Antes mesmo da concepção do existir, eles já existiam
e devoravam o nada ao seu redor. Numa terra de ninguém, inexistia pureza ou
pecado. Eles eram um só, numa dança atemporal, sem som, nem calor. O universo
não dispunha de movimento. O cosmos, um vazio escoado à sua própria essência.
Não havia definição alguma, atividade ou vontade.
Um casal
rotineiro, sem filhos, com ausência de mínima variação nos costumes: não eram
iguais, mas estavam fundidos numa imersão profunda e constante. Não se sabe ao
certo o que houve; talvez a mesmice de sempre, o comodismo de ambos, ou a falta
de novidade fez com que se separassem. Contudo, não foi um processo fácil,
ambos eram por demais ligados um ao outro; já não sabiam onde esse começava e outrem
terminava. Na verdade, mal tinham certeza de quem realmente eram,
separadamente. Não possuíam identidade própria, entretanto iriam encontrá-la. O
rompimento causou um colapso tal, que os abalos estenderam-se para além do
infinito, alterando a ordem natural de tudo até ali. Cada um foi para um lado,
em extremos opostos, e, à medida que caminhavam, a totalidade à sua volta
expandia-se também. Foi quando ela descobriu-se grávida. Seria o resultado
concreto do ato consumado. Realidade, insubsistente antes do término da
relação, tornou-se exequível originando o movimento, e consequentemente o tempo
e o espaço. Ela daria à luz ao fruto fecundo do mais puro Amor. Do Amor mais
puro. O princípio da existência. Pariu. Deu vida a toda Criação. Seus filhos,
sua prole. Viu-se mãe, e teria de aprender a lidar com esta nova condição para
criá-los, ensinar-lhes a sobreviver por si mesmos. Enquanto em seu ventre,
adormeciam no líquido amniótico, alimentados e protegidos pelo manto maternal
da paz profunda, da serenidade da inconsciência. Fora dele, a Grande Mãe os
instruiria oferecendo-lhes um leque de possibilidades. No começo, na distinção
e diversidade de suas características, complementavam-se fraternalmente.
Irmãos, semelhantes nas suas diferenças, iguais na sua essência. Amavam aquela
que os gerou, a Mãe que forjou todo um mundo para ser o berço de suas crias. E
ela sentia-se orgulhosa que cada qual era uma parte de si, e juntos, eram-na por
inteira. Eles a ouviam; seguiam seus conselhos, era a voz que os guiava.
Presenteavam-na, prestavam-lhe homenagens, honravam-na. Formavam uma família
feliz, com uma matriarca que inspirava paciência, sabedoria, sutileza e
coragem, a feminilidade da Vida.
Mas o Pai
soube de seus filhos, e quis assumir seu papel e reivindicar seus direitos. O reencontro entre as
Forças Creadoras (do latim, crear) foi desastroso, e resultou em
discórdia, disputa de poder e autoridade, confrontos e desentendimentos que se
propagaram como ondas eletromagnéticas desestabilizadoras. Uma luta de
gigantes, e na ausência de base familiar, as criaturas tomaram o recém-nascido
livre arbítrio para si. Vagaram errantes, desvirtuosos por veredas sombrias e
pérfidas. Alguns de lá não mais sairiam. Nesse período, muitos se intitularam
deuses, senhores sobre os demais, impondo-se com superioridade. A soberba, a
iniquidade, as moléstias inundaram a terra com trevas que se estendiam por
vales inteiros, por céus e mares, numa tormenta violenta de terror e maldade. Quando
as Fontes Paradoxas do universo deram-se conta e olharam para toda a Criação,
viram uma mixórdia do verbo em ação, propagada e desencadeada pela energia
liberada da tensão dos Dois. Acusaram-se mutuamente. A Grandeza masculina
tentou restabelecer a normalidade naquele caos. Sentiu-se frustrado nas
tentativas em vão. O Pai dos Céus não tinha qualquer credibilidade na
superfície terrena, não era respeitado, reconhecido pelos seus próprios filhos,
que agiam sem fé, nem esperança. Decidiu puni-los. Escolheu um entre seus
filhos para ajudar-lhe na renovação da vida de todo o planeta. Um que o
escutou. Após dar-lhe as instruções necessárias, chorou. Desabou chorando, de
dor e desespero, com um pesar profundo por não ter conseguido exercer controle
por sob a Terra. Banhou-a com seu pranto, lavou-a creditando estar eliminando
toda a impureza, achando serem suas lágrimas o antídoto ao vírus que assolava e
corrompia a natureza, o código inicial da essência dos seres. De nada adiantou.
O Mal proliferado já havia se enraizado profundamente nas entranhas do que
outrora fora o mundo perfeito. E este mesmo mundo repovoou-se irregularmente,
culminando em desarmonia generalizada novamente.
Agora as
coisas iriam encaminhar-se por si mesmas, jurou para si o Aspecto Cósmico
masculino. Ele e a universalidade feminina não mais se entenderam. Por tudo que
deveria ser... e não foi. A palavra do pai aos poucos foi disseminando-se pela
Terra, atingindo proporções e distorções várias, interpretada e mal
interpretada, sugerindo mudanças nas condutas, comportamentos e posturas das
pessoas. Nos seres que ele ajudou a criar. A Grande Mãe foi enclausurada. Quase
esquecida. Houve tempos terríveis, sanguinários, de muito medo e
intolerância... em nome da fé.
A matriarca
aos poucos foi relembrada. A luz do esclarecimento, do conhecimento voltou a
despertar os sentidos adormecidos da volúvel raça humana, segundo conta uma
lenda. Assim, recobra-se o contato com a Verdade que em cada um habita, e que
em todo lugar está, e isso traz a paz, a harmonia. Ainda conta a lenda que a
união das Forças opostas que regem a vida universal, terá um desfecho feliz,
pois eles se reaproximarão, retomando o casamento perfeito. O equilíbrio de
toda concepção concreta e abstrata depende disso; viver num único e verdadeiro
Reino: o do Amor.
Em pleno séc. XXI a
mulher ainda luta contra tabus, desvalorização e discriminação de todo tipo. Ao
longo da história, e no transcorrer de processos e transformações sociais e
culturais, a mulher busca firmar seus direitos na igualdade de gêneros, e
conquistar seu espaço como profissional, cidadã, mãe e esposa, superando
preconceitos, e quebrando paradigmas. Esse caminho de lutas e glórias, muitas
vezes marcado por violência e privações, é o legado que dia após dia essas
guerreiras carregam em sua trajetória. Infelizmente ainda são alarmantes as
estatísticas referentes à violência contra a mulher, e as ações e movimentos
que surgem a fim de fortalecer o propósito em acabar com tamanha barbárie são
ainda pequenos diante da realidade atual.
Conceitos depreciativos
e uma mentalidade profundamente machista coexistem com importantes conquistas
femininas em diversas áreas da sociedade. A cultura de massa que ajuda a
propagar uma visão degradante da imagem da mulher, somada a uma concepção
limitante do papel da mesma são ingredientes perfeitos para fortalecer o senso
(ou seria a falta dele?) da pseudo superioridade masculina.
Chiquinha Gonzaga,
compositora, musicista e primeira maestrina do Brasil enfrentou a sociedade
patriarcal do séc. IXX revolucionando padrões comportamentais encarados como
imorais e inaceitáveis. Casou-se duas vezes e se separou; firmou-se como
pianista profissional, o que era inédito para uma mulher na época; fundou a primeira
sociedade protetora e arrecadadora de direitos autorais do país para valorizar
o trabalho dos artistas. Ela encarou os desafios tanto profissionais quanto
pessoais em um período em que a mulher nada podia. Porém, 80 anos após sua
morte, os avanços quanto aos direitos e à valorização da figura feminina ainda
estão em um curso sombrio. Abusos, estupro, violência... questões culturalmente enraizadas e aceitas nas crenças coletivas. Um estupro coletivo pode ser
justificado, agressões físicas e violência doméstica também, só para citar
alguns. É, muita coisa não se
encaixa, contextos deturpados que não dão vez ao respeito à pessoa, às suas
escolhas, suas convicções, sua sexualidade, sua natureza feminina, seu papel
social. A mulher não só tem o direito de exercer seu livre-arbítrio de maneira
plena e total. Ela tem esse direito e merece todo respeito, e merece usando minissaia,
calça jeans ou burca.
Simplesmente
mulher
"Seus
sapatos seguindo rastros, suportando fardos que só
mulheres
como nós sabem aguentar. Sobreviver de
migalhas,
farelos pisoteados só para fazer jus aos sonhos
de
uma esperança quase sem fim.
São
pés cansados beirando o asfalto da discórdia e da
dor.
Num mundo doente, nossas mãos buscam sementes
tragadas
pelo chão quase sem vida, seco de amor.
O
corpo padece, vacila, mas a mente elucida que há tanto
por
fazer, seria egoísmo continuar a questionar. Esse é o
preço,
e mesmo à beira do desespero, a verdade não nos
pode
faltar. Através dela vem a coragem, e amor e
vontade
de seguir forte adiante, mesmo que ninguém
perceba.
E ninguém percebe.
Quem sabe das suas cicatrizes,
das batalhas das quais saiu
derrotada,
quase morta?
Quem
sabe dos seus sonhos e meninices, dos seus
fantasmas
e sandices?
Seus
anjos e suas trevas estão consigo, e somente consigo,
O texto abaixo conta com alguns recursos para dar mais ênfase e vida, como uma música de minha autoria bem no final (vale lembrar que eu não sou violonista, então considerem por favor). A seguir o conto Verdades Incertas.
O que dizer de Joana?!
Sonhadora, dramática existencialista e que ainda por cima acreditava não só em
pequenos milagres e seus lampejos de esperança, mas em milagres capazes de transformar
por completo a vida de alguém. Um misto de doçura e rispidez marcavam sua
personalidade, como os mais próximos bem sabiam. Vivia movida à emoção mesmo
sabendo ser um alto preço a se pagar, entretanto era algo intrínseco à sua
natureza, por mais racional e ponderada que ela tentasse ser. Talvez houvesse
alguém em algum lugar com muitas coisas assim em comum, e quem sabe ainda o
destino trataria, de alguma maneira, de aproximá-los.
Em frente à tela de seu
computador, ela se perguntava se aquele simpático rapaz era apenas mais um
personagem do mundo virtual criado por um alguém completo oposto, ou se
realmente era uma pessoa de carne e osso sendo ela mesma. As conversas on-line
mantinham-se interessantes desde o começo, e mesmo com o passar dos dias os
assuntos fluíam entre eles. Ela gostava de falar com aquele cara, afinal bom
papo hoje em dia é raro, ainda mais pela internet. Mas havia um ponto em
especial que chamava mais sua atenção: Joana desconfiava que talvez ele fosse
sincero, mas ainda era cedo, muito cedo para aquela mulher ter certeza disso. E
assim os dias iam passando, e assim a vontade entre eles de manter contato e de
se falar (teclar, diga-se de passagem) aumentava. Joana passava por uma fase
complicada em sua vida; seu relacionamento findara, seu lado profissional
estava sendo reformulado, havia problemas familiares, e como mãe ela sentia-se
fracassada e frustrada. Dividir isso com qualquer pessoa estava fora de
cogitação, ou talvez não já que seu ex-namorado queria ampará-la no que fosse
preciso. Não, ela sabia que isso não daria certo, nunca havia dado; era
doloroso e desolador, mas ela precisava seguir em frente por si mesma, com sua própria
força (quase escassa). E fora nesse meio tempo de transição que a amizade
virtual com aquele sujeito ora problemático e ranzinza, ora acolhedor e
envolvente se intensificou. A sensível mulher percebeu que ele precisava de
ajuda, mas o que fazer diante da situação demasiada delicada entre eles? As
conversas na maioria das vezes pendiam
para graves desentendimentos no final da noite, e Joana que pensava seriamente
em resolver aquilo simplesmente deletando o jovem instável de seus contatos, se
viu diante de algo que o coração apontava para o exercício da paciência. Na
verdade ambos precisavam de ajuda, ambos gritavam e sofriam com seus próprios
problemas; os dois queriam apenas um milagre em suas vidas. A cilada do destino
estava armada.
- Como a gente consegue brigar tanto, ainda mais virtualmente?
-
Eu já te falei cada coisa absurda... meu deus...
Quando Joana se deu
conta, ela já não era apenas uma amiga à distância preocupada com alguém que
parecia perdido; ela estava apaixonada. Eram madrugadas adentro via mensagens e
telefonemas; era um algo sem explicação que não a deixava se afastar nem
raciocinar o quanto aquilo tudo era infrutífero e insano. João a conquistou e a
elevou como sua salvadora, afirmando isso com todas as letras. Ela gostava
daquela atenção que mesmo muito tempestuosa a fazia acreditar ser uma pessoa
especial; especial para aquele por quem ela estava irremediavelmente caidinha.
Sua alma de artista deixava-se levar por aquelas palavras... ah, as palavras!
Joana adorava as palavras... mesmo sabendo que elas são flores fincadas em
lâminas afiadas.
Mesmo com todas as
contrariedades, eles seguiram ávidos pelo desejo de viver uma história sem
precedentes. Duas crianças brincando num carrossel holográfico que apenas eles
enxergavam. Tudo no plano do imaginável. A uma altura dessas, Joana já não
conseguia discernir, mesmo se quisesse, as consequências que um envolvimento às
cegas como aquele poderiam trazer. As conversas, as cobranças, as declarações
apaixonadas, o mergulho suicida na crença do amor sem muitas objeções guiavam
suas rotinas. E assim mantiveram-se até o encontro real. Finalmente depois de
tantos meses e tentativas adiadas de se conhecerem cara a cara, poderiam se
olhar nos olhos e se abraçar.
Era mágico e o frio na
barriga aumentava à medida que as horas e os minutos avançavam; aquela jovem
mulher queria tanto beijá-lo! Ele a fazia sonhar. Quando se viram e se
encontraram pela primeira vez, seus rostos pareciam iluminados e naquele
instante nada mais importava. Era engraçado o que eles haviam superado para
estar ali, tanta briga e discussão idiota que não tinham mais qualquer sentido então.
Joana sentia-se meio entorpecida com a situação, e por mais que achasse que
João não estivesse muito à vontade, acreditava que talvez fosse por sua
timidez. Ele havia avisado. Os dois estavam juntos, e isso bastava. Eles se
olharam ternamente e se beijaram encostados no carro do rapaz como dois
adolescentes desajeitados acolhidos pela noite serena. Passearam de mãos dadas
entre sorrisos e poucas palavras pela avenida pouco movimentada de um dia
qualquer, e após um lanche rápido, saíram rumo a um lugar tranquilo para se
curtir; o resto da noite seria só deles.
Assim que entraram no
quarto alugado, João perguntou se ela conseguia ouvir seu coração batendo
forte. Joana sorriu e disse que sim. Ela o amava e sentia-se feliz por estar
ali. Queriam um ao outro e seus corpos pediam por isso. Fizeram amor a noite
inteira até a manhã seguinte, aventurando-se na lascívia da paixão. Selaram um
compromisso de respeito e cumplicidade olhando nos olhos um do outro; fariam de
tudo por aquela união, enfrentariam qualquer coisa para permanecerem juntos.
Doce ilusão. Ao se despedirem, talvez tomados pela emoção, ou por quererem
acreditar na fantasia do momento, declararam um “Eu amo você” que
incendiou o coração de Joana. Ao se afastarem e darem um último adeus pela
vidraça do ônibus que se retirava, a moça sentia o peito apertar de saudade e
tristeza. As mensagens por celular que eles trocaram em seguida mostraram que
era recíproco, eles estavam em sintonia e o universo conspiraria a favor deles
(ou não).
Os dias que se seguiram
foram conturbados, marcados por brigas e desentendimentos. Motivos banais
escondendo questões sérias foram usados para testar se aquela relação era
verdadeira ou perene. Separados por mais de 50 km de distância, cada um estava
envolvido em seus próprios problemas e correrias. Porém o final de semana se
aproximava e tudo aquilo se findaria, pois estariam juntos novamente. Mas isso
não aconteceria. Eles não puderem se encontrar pessoalmente, e por telefone,
verdades vieram à tona e Joana não aguentou a pressão; queria ter certeza da
verdade mais a fundo. João não era exatamente quem ela imaginava; versões
várias lhe foram apresentadas e em sua cabeça tudo ficou quente e confuso. A
impulsiva mulher ficou transtornada diante de certos fatos que fugiam completamente
com o que o cara por quem ela estava perdidamente apaixonada afirmava ao longo
do tempo em que se conheciam. Um ponto final em toda aquela enganação precisava
ser dado. As palavras de carinho foram substituídas por insultos e ofensas, de
ambas as partes, e no desenrolar da semana tudo apenas piorou. Uma enxurrada de
acusações absurdas veio da contramão em direção a Joana, e nada mais,
absolutamente nada mais fazia sentido naquele lamaçal de injúrias e mentiras.
Tudo acabou em meio a um buraco negro de desavenças e sofrimento. Joana e João
tornaram-se dois estranhos cegos de cólera, e tomados por ressentimentos e
feridas profundas. Ainda assim a incorrigível romântica sentia falta daquele
rapaz.
As promessas foram tão
fáceis... mas não simplesmente jogadas fora ou esquecidas como panos velhos
corroídos pelo tempo; tudo estava fresco demais para isso. As promessas foram
degoladas e rasgadas com vigor e ódio. Como aquele amor que parecia real, que
parecia palpável, que parecia sincero se transformou em tanta discórdia e dor
de uma hora para outra?!
-
Eu juro que vou fazer de tudo por esse amor – ambos
juraram; tudo era possível enquanto estavam nus sob a cama com suas peles se
roçando. Reforçaram o juramento de nunca mentir ou omitir algo um ao outro
enquanto a manhã lá fora se arrastava como o despontar de um novo horizonte em
suas vidas. Eles haviam divido medos e sonhos, anseios e objetivos um com o
outro. Tudo havia se comprovado um grande engano e devaneio pueril.
-
Eu tremo só de pensar em te perder...
O baque foi forte
demais para a sonhadora Joana. Por mais melodramático que pareça, ela não
conseguia comer ou se concentrar direito em nada. Pouco a pouco as coisas iriam
ser digeridas, talvez um pouco à força, mas devagar tomariam seu percurso
natural de conformidade. Até seu telefone tocar numa noite chuvosa. Era João.
Havia apenas um assunto ainda pendente entre eles, mas que podia ser resolvido
por intermédio de outros meios. Um e-mail ou mensagem de celular seria
suficiente, mas o telefone insistiu em tocar mais uma vez. Ela não queria falar
com ele, era doloroso e desnecessário; ainda assim atendeu como se tivesse
peito suficiente para escutar a voz de alguém que em tão pouco tempo lhe
causava tanto estrago.
O tom de ambos não foi
amistoso. O estômago da jovem revirava conforme a conversa avançava, e com os
esclarecimentos vindouros seu coração sangrava rarefeito. João com naturalidade
confirmou que ele a ex estavam ensaiando reatar o namoro, que ele tentara se
enganar e Joana havia sido uma opção como tapa buraco. Ela mal conseguia
acreditar... A falta de tato e de consideração por parte dele consumiam-na
internamente. Ao menos todos estavam felizes; sua família por vê-los separados,
a ex e ele por estarem juntos novamente. Ele nunca fora merecedor de seu amor.
Após encerrar a ligação
para nunca mais, ela fumou um cigarro, e outro, pensando o quanto fora trouxa. Ela
havia participado de uma história fictícia, e se perguntava como alguém podia brincar
com os sentimentos alheios de forma tão egoísta e mesquinha daquele jeito. Era um
aprendizado a mais para ela guardar em sua caixinha de “olha como é a vida, não cai mais nessas”... Estava doendo, mas ia
passar. Ela gostaria que aquilo tudo fosse apenas um grande mal entendido, mas
não era. As pessoas mentem e enganam todos os dias; alguns verdadeiros
jogadores profissionais. Tudo ficaria bem a partir dali com as máscaras ao chão,
e ao menos por isso ela sentia-se aliviada. Mesmo amando-o, ele nunca mais
ouviria isso de sua boca. E com a certeza de uma alma em chamas, Joana
despediu-se do rastro de uma mentira amarga. Enfim, tudo acabara.