AS PALAVRAS ENGASGADAS DE MIA



# 1

Mia levantou-se da cama. Era mais um dia, apenas mais um dia, somente mais um dia. O dia acabaria e tudo ficaria bem. A promessa de que uma hora tudo melhoraria é que a incitava a prosseguir. Ela sentou-se na janela da varanda e acendeu um de seus cigarros de cravo, enquanto bebericava o resto de vodka que sobrara na garrafa. Sua casa estava uma bagunça e a angústia de seus pensamentos a sufocava. O cachorro do vizinho não parava de latir, e sua vontade era mandar tudo e todos para o inferno. Doce vontade!

Ela precisava trabalhar e diariamente se questionava sobre seu papel dentro desse contexto. Ela era parte da engrenagem, porém substituível. A máquina da economia continuaria a funcionar pecuniariamente bem; mesmo se ela viesse a faltar. Ficou pensando qual seria sua contribuição visto que todos os trabalhos são importantes, mesmo as pessoas vivendo de status em seus respectivos espaços, conforme seu próprio  ego condicionado; e assim dividir o mundo em esferas, castas, classes, ordens, setores... Putz, estava atrasada; as horas passavam enquanto a bagunça continuava, e a sensação de luz própria apagada também. Pegou sua tolha, ligou o chuveiro e se deixou fluir.

“No murmúrio surdo de frustrações encardidas,

a água escorre por todos os lados, mas sai quase

limpa. Não é água nem sabão que tirarão minhas máculas.

São vãs as auto-sugestões, os vícios; meios corrompidos

e fracassados. Como os sonhos...repousando numa

manjedoura.

 

 A água serpenteia pelo ralo do banheiro; banheiro

 pequeno quase a sufocar-me por inteira.

Distancio-me serena, apática, sem pena.

Murmúrios surdos irão

acompanhar-me.”

 # 2
           

Mia abriu a porta que dava para a rua, e encarou o sol forte daquela manhã. O movimento da vizinhança era o mesmo de sempre, e as crianças corriam e viviam a magia da vida, despidas de maiores pretensões. Desnecessárias pretensões. Colocou seus óculos escuros, e seguiu pela calçada até chegar ao ponto de ônibus. Pelo caminho foi recolhendo impressões que analisaria durante a viagem até o trabalho. A vida era patética e seu estômago embrulhava com a trivialidade de suas preocupações. O algo a mais parecia que não viria; sair do torpor era sua maior dificuldade. O ônibus chegou e ela pulou para dentro dele. Sentou-se ao lado de uma das janelas, e permaneceu calada, incomodada e de saco cheio do movimento frenético e sistematicamente caótico da configuração espacial ao seu redor, lá fora. Tudo parecia descontrolado e por um fio a todo instante; o vai e vem de veículos, e de pessoas, mecânicas rumo ao matadouro diário, não a convencia. Isso não era vida, não era liberdade. Eram paraísos artificias... montados na próxima esquina, estampados nos outdoors, e massificados pelos meios de comunicação... e assim sonhos podiam ser vendidos, perspectivas podiam ser projetadas. Mas sonhos não são vendidos; sonhos são apenas sonhados. Hoje sonhos são apenas produtos, rentáveis, lucrativos e substituíveis. Como ela em seu emprego. Como as peças da engrenagem. Nossas vidas resumem-se e são cotadas pelo Mercado. Ela sentia que estava em queda na Bolsa.

Ao chegar a seu destino, foi surpreendida por um tumulto causado entre fiscais e camelos. Até que ponto não pagar tributos ao município e ao governo, e às empresas e artistas, por comercializarem produtos falsificados e piratas era justa? Até que ponto justiça e dinheiro caminham juntos? Talvez a pergunta pudesse ser feita à família, e aos filhos desses cidadãos, vendedores ambulantes não regularizados e não muito beneficiados pelo poder público. Obviamente temos nossa culpa escolhendo e elegendo mal nossos representantes, colocando-os no legislativo e executivo. Por troca de favores e migalhas, assim como conta bancária própria, o tabuleiro é montado e taticamente caem primeiro os mais fracos, os mais desatentos e desprotegidos. Ou se está dentro, ou não está. O jogo de interesses se perpetua, e a linha de frente dessa força tarefa continua sendo a bunda do povo.

Mia olhou para trás, uma vez mais para a cena de bug do sistema. Sentiu uma estranha sensação de insuficiência... neural, social, conceitual. O mundo não permite que você fique em cima do muro, exige de você um posicionamento. Mas sinceramente ela tinha sérias dúvidas quanto a sua posição, e o acontecimento envolvendo a fiscalização e os ambulantes, fora apenas uma somatória aos seus questionamentos. Questionamentos inofensivos e pouco barulhentos até então.

Chegou ao trabalho e foi se trocar. Enquanto vestia o uniforme, perguntava-se que raios estava fazendo ali!  


#3
- Como é que você tá flor?! Passou e nem falou comigo.... – era Dani, uma colega que tornara-se uma grande amiga naquela cova de leões. Mia sorriu procurando disfarçar sua apatia.
- Dia difícil... mas você sabe que eu te adoro né?! – disse Mia, com olhos ternos.
- O dia mal começou, deixa disso. Você pode me ajudar no estoque? – Mia não tinha tempo para pensar em bobagens enquanto trabalhava. Mecanicamente ela organizava o depósito do estoque; atendia os clientes; tomava cafezinho ouvindo a fofoca de suas colegas da loja; era alvo do desejo secreto de seu chefe e encerrava suas atividades profissionais. Ao final do dia ela não sabia se aquela intermitente sensação de desconforto era o peso de outro fardo adensando-se em sua alma, ou se era a retirada de uma parte viva sua que desconhecia. Ela via o rebanho seguindo adiante e se perguntava se naquela procissão cega, alguém conseguia distinguir quem era o pastor que os guiava. Ela, de onde estava não conseguia avistá-lo, nem entendia para onde juntamente com os outros estava sendo empurrada.
- Mia, tô indo embora, você me pareceu avoada o dia todo... você vai ficar bem? – disse-lhe Dani – O pessoal e o Val tavam a fim de tomar uma cervejinha no Gija. Vamo com a gente?!
- Poxa, valeu linda. Não tô nem um pouco a fim de sair hoje, quero mesmo descansar. Vai lá, curte lá, depois tu me conta como foi – respondeu-lhe com uma piscadela.
- Tu me preocupa criança... seu jeito de ser é de quem escolheu sofrer. Promete que vai ficar bem?
- Vai logo lá que teu bofe tá esperando... – falou Mia com um nó na garganta ao tentar fingir, que tudo ia ficar bem, a uma das poucas pessoas que realmente se importavam com ela. As duas amigas se despediram. Mia estava saindo da loja quando seu patrão a parou e puxou conversa sobre o andamento e rotina do empreendimento.
- Tudo correu bem ao seu ver Mia? Digo, você tem alguma sugestão ou crítica sobre algo na loja, algo que poderia ser melhorado ou algo assim? – Mia achou graça ao vê-lo nitidamente sem jeito tentando de uma maneira sutil chegar nela. Ela era um rapaz bacana, responsável, íntegro, do bem. Ele era um cara expansivo, comunicativo, mas todos já haviam percebido que quando estava perto dela, ele se retraía.
- A princípio acho que não Lucas. Mas vou pensar a respeito e depois te digo.
- Sim, claro – disse o rapaz meio encabulado. Permaneceram calados por um breve instante, ambos sem saber ao certo o que falar ou fazer, até a moça decidir romper o silêncio.
- Bom, agora preciso ir. Bom descanso Lucas, até amanhã. – ele sorriu retribuindo-lhe a cordialidade. Mia então deu as costas para ir embora.
- Mia! – chamou-lhe outra vez o rapaz – poxa, que cabeça a minha. Estava me esquecendo que estou indo para aquele lado que você mora, e queria ver se você não quer uma carona.
- Sério? Achei que morasse do outro lado da cidade.
- Sim, mas eu vou visitar... uma tia – disse Lucas com cara de tacho.
- Bom, então tá, eu aceito sim – Durante todo o caminho, Lucas disparou a conversar de uma forma que Mia nunca tinha visto. Colocou um som para ouvirem,  falava animadamente, e parecia não estar nem aí com o terrível congestionamento que encontraram pela frente. O engraçado é que até a garota estava se sentindo mais leve, envolvida pela sintonia que estava rolando entre os dois. De fato estava brotando um clima ali, em meio ao caos da hora do ... Quando perceberam, já estavam na porta da casa de Mia.

Nenhum comentário:

Postar um comentário