Em pleno séc. XXI a
mulher ainda luta contra tabus, desvalorização e discriminação de todo tipo. Ao
longo da história, e no transcorrer de processos e transformações sociais e
culturais, a mulher busca firmar seus direitos na igualdade de gêneros, e
conquistar seu espaço como profissional, cidadã, mãe e esposa, superando
preconceitos, e quebrando paradigmas. Esse caminho de lutas e glórias, muitas
vezes marcado por violência e privações, é o legado que dia após dia essas
guerreiras carregam em sua trajetória. Infelizmente ainda são alarmantes as
estatísticas referentes à violência contra a mulher, e as ações e movimentos
que surgem a fim de fortalecer o propósito em acabar com tamanha barbárie são
ainda pequenos diante da realidade atual.
Conceitos depreciativos
e uma mentalidade profundamente machista coexistem com importantes conquistas
femininas em diversas áreas da sociedade. A cultura de massa que ajuda a
propagar uma visão degradante da imagem da mulher, somada a uma concepção
limitante do papel da mesma são ingredientes perfeitos para fortalecer o senso
(ou seria a falta dele?) da pseudo superioridade masculina.
Chiquinha Gonzaga,
compositora, musicista e primeira maestrina do Brasil enfrentou a sociedade
patriarcal do séc. IXX revolucionando padrões comportamentais encarados como
imorais e inaceitáveis. Casou-se duas vezes e se separou; firmou-se como
pianista profissional, o que era inédito para uma mulher na época; fundou a primeira
sociedade protetora e arrecadadora de direitos autorais do país para valorizar
o trabalho dos artistas. Ela encarou os desafios tanto profissionais quanto
pessoais em um período em que a mulher nada podia. Porém, 80 anos após sua
morte, os avanços quanto aos direitos e à valorização da figura feminina ainda
estão em um curso sombrio. Abusos, estupro, violência... questões culturalmente enraizadas e aceitas nas crenças coletivas. Um estupro coletivo pode ser
justificado, agressões físicas e violência doméstica também, só para citar
alguns. É, muita coisa não se
encaixa, contextos deturpados que não dão vez ao respeito à pessoa, às suas
escolhas, suas convicções, sua sexualidade, sua natureza feminina, seu papel
social. A mulher não só tem o direito de exercer seu livre-arbítrio de maneira
plena e total. Ela tem esse direito e merece todo respeito, e merece usando minissaia,
calça jeans ou burca.
Simplesmente
mulher
"Seus
sapatos seguindo rastros, suportando fardos que só
mulheres
como nós sabem aguentar. Sobreviver de
migalhas,
farelos pisoteados só para fazer jus aos sonhos
de
uma esperança quase sem fim.
São
pés cansados beirando o asfalto da discórdia e da
dor.
Num mundo doente, nossas mãos buscam sementes
tragadas
pelo chão quase sem vida, seco de amor.
O
corpo padece, vacila, mas a mente elucida que há tanto
por
fazer, seria egoísmo continuar a questionar. Esse é o
preço,
e mesmo à beira do desespero, a verdade não nos
pode
faltar. Através dela vem a coragem, e amor e
vontade
de seguir forte adiante, mesmo que ninguém
perceba.
E ninguém percebe.
Quem sabe das suas cicatrizes,
das batalhas das quais saiu
derrotada,
quase morta?
Quem
sabe dos seus sonhos e meninices, dos seus
fantasmas
e sandices?
Seus
anjos e suas trevas estão consigo, e somente consigo,
O texto abaixo conta com alguns recursos para dar mais ênfase e vida, como uma música de minha autoria bem no final (vale lembrar que eu não sou violonista, então considerem por favor). A seguir o conto Verdades Incertas.
O que dizer de Joana?!
Sonhadora, dramática existencialista e que ainda por cima acreditava não só em
pequenos milagres e seus lampejos de esperança, mas em milagres capazes de transformar
por completo a vida de alguém. Um misto de doçura e rispidez marcavam sua
personalidade, como os mais próximos bem sabiam. Vivia movida à emoção mesmo
sabendo ser um alto preço a se pagar, entretanto era algo intrínseco à sua
natureza, por mais racional e ponderada que ela tentasse ser. Talvez houvesse
alguém em algum lugar com muitas coisas assim em comum, e quem sabe ainda o
destino trataria, de alguma maneira, de aproximá-los.
Em frente à tela de seu
computador, ela se perguntava se aquele simpático rapaz era apenas mais um
personagem do mundo virtual criado por um alguém completo oposto, ou se
realmente era uma pessoa de carne e osso sendo ela mesma. As conversas on-line
mantinham-se interessantes desde o começo, e mesmo com o passar dos dias os
assuntos fluíam entre eles. Ela gostava de falar com aquele cara, afinal bom
papo hoje em dia é raro, ainda mais pela internet. Mas havia um ponto em
especial que chamava mais sua atenção: Joana desconfiava que talvez ele fosse
sincero, mas ainda era cedo, muito cedo para aquela mulher ter certeza disso. E
assim os dias iam passando, e assim a vontade entre eles de manter contato e de
se falar (teclar, diga-se de passagem) aumentava. Joana passava por uma fase
complicada em sua vida; seu relacionamento findara, seu lado profissional
estava sendo reformulado, havia problemas familiares, e como mãe ela sentia-se
fracassada e frustrada. Dividir isso com qualquer pessoa estava fora de
cogitação, ou talvez não já que seu ex-namorado queria ampará-la no que fosse
preciso. Não, ela sabia que isso não daria certo, nunca havia dado; era
doloroso e desolador, mas ela precisava seguir em frente por si mesma, com sua própria
força (quase escassa). E fora nesse meio tempo de transição que a amizade
virtual com aquele sujeito ora problemático e ranzinza, ora acolhedor e
envolvente se intensificou. A sensível mulher percebeu que ele precisava de
ajuda, mas o que fazer diante da situação demasiada delicada entre eles? As
conversas na maioria das vezes pendiam
para graves desentendimentos no final da noite, e Joana que pensava seriamente
em resolver aquilo simplesmente deletando o jovem instável de seus contatos, se
viu diante de algo que o coração apontava para o exercício da paciência. Na
verdade ambos precisavam de ajuda, ambos gritavam e sofriam com seus próprios
problemas; os dois queriam apenas um milagre em suas vidas. A cilada do destino
estava armada.
- Como a gente consegue brigar tanto, ainda mais virtualmente?
-
Eu já te falei cada coisa absurda... meu deus...
Quando Joana se deu
conta, ela já não era apenas uma amiga à distância preocupada com alguém que
parecia perdido; ela estava apaixonada. Eram madrugadas adentro via mensagens e
telefonemas; era um algo sem explicação que não a deixava se afastar nem
raciocinar o quanto aquilo tudo era infrutífero e insano. João a conquistou e a
elevou como sua salvadora, afirmando isso com todas as letras. Ela gostava
daquela atenção que mesmo muito tempestuosa a fazia acreditar ser uma pessoa
especial; especial para aquele por quem ela estava irremediavelmente caidinha.
Sua alma de artista deixava-se levar por aquelas palavras... ah, as palavras!
Joana adorava as palavras... mesmo sabendo que elas são flores fincadas em
lâminas afiadas.
Mesmo com todas as
contrariedades, eles seguiram ávidos pelo desejo de viver uma história sem
precedentes. Duas crianças brincando num carrossel holográfico que apenas eles
enxergavam. Tudo no plano do imaginável. A uma altura dessas, Joana já não
conseguia discernir, mesmo se quisesse, as consequências que um envolvimento às
cegas como aquele poderiam trazer. As conversas, as cobranças, as declarações
apaixonadas, o mergulho suicida na crença do amor sem muitas objeções guiavam
suas rotinas. E assim mantiveram-se até o encontro real. Finalmente depois de
tantos meses e tentativas adiadas de se conhecerem cara a cara, poderiam se
olhar nos olhos e se abraçar.
Era mágico e o frio na
barriga aumentava à medida que as horas e os minutos avançavam; aquela jovem
mulher queria tanto beijá-lo! Ele a fazia sonhar. Quando se viram e se
encontraram pela primeira vez, seus rostos pareciam iluminados e naquele
instante nada mais importava. Era engraçado o que eles haviam superado para
estar ali, tanta briga e discussão idiota que não tinham mais qualquer sentido então.
Joana sentia-se meio entorpecida com a situação, e por mais que achasse que
João não estivesse muito à vontade, acreditava que talvez fosse por sua
timidez. Ele havia avisado. Os dois estavam juntos, e isso bastava. Eles se
olharam ternamente e se beijaram encostados no carro do rapaz como dois
adolescentes desajeitados acolhidos pela noite serena. Passearam de mãos dadas
entre sorrisos e poucas palavras pela avenida pouco movimentada de um dia
qualquer, e após um lanche rápido, saíram rumo a um lugar tranquilo para se
curtir; o resto da noite seria só deles.
Assim que entraram no
quarto alugado, João perguntou se ela conseguia ouvir seu coração batendo
forte. Joana sorriu e disse que sim. Ela o amava e sentia-se feliz por estar
ali. Queriam um ao outro e seus corpos pediam por isso. Fizeram amor a noite
inteira até a manhã seguinte, aventurando-se na lascívia da paixão. Selaram um
compromisso de respeito e cumplicidade olhando nos olhos um do outro; fariam de
tudo por aquela união, enfrentariam qualquer coisa para permanecerem juntos.
Doce ilusão. Ao se despedirem, talvez tomados pela emoção, ou por quererem
acreditar na fantasia do momento, declararam um “Eu amo você” que
incendiou o coração de Joana. Ao se afastarem e darem um último adeus pela
vidraça do ônibus que se retirava, a moça sentia o peito apertar de saudade e
tristeza. As mensagens por celular que eles trocaram em seguida mostraram que
era recíproco, eles estavam em sintonia e o universo conspiraria a favor deles
(ou não).
Os dias que se seguiram
foram conturbados, marcados por brigas e desentendimentos. Motivos banais
escondendo questões sérias foram usados para testar se aquela relação era
verdadeira ou perene. Separados por mais de 50 km de distância, cada um estava
envolvido em seus próprios problemas e correrias. Porém o final de semana se
aproximava e tudo aquilo se findaria, pois estariam juntos novamente. Mas isso
não aconteceria. Eles não puderem se encontrar pessoalmente, e por telefone,
verdades vieram à tona e Joana não aguentou a pressão; queria ter certeza da
verdade mais a fundo. João não era exatamente quem ela imaginava; versões
várias lhe foram apresentadas e em sua cabeça tudo ficou quente e confuso. A
impulsiva mulher ficou transtornada diante de certos fatos que fugiam completamente
com o que o cara por quem ela estava perdidamente apaixonada afirmava ao longo
do tempo em que se conheciam. Um ponto final em toda aquela enganação precisava
ser dado. As palavras de carinho foram substituídas por insultos e ofensas, de
ambas as partes, e no desenrolar da semana tudo apenas piorou. Uma enxurrada de
acusações absurdas veio da contramão em direção a Joana, e nada mais,
absolutamente nada mais fazia sentido naquele lamaçal de injúrias e mentiras.
Tudo acabou em meio a um buraco negro de desavenças e sofrimento. Joana e João
tornaram-se dois estranhos cegos de cólera, e tomados por ressentimentos e
feridas profundas. Ainda assim a incorrigível romântica sentia falta daquele
rapaz.
As promessas foram tão
fáceis... mas não simplesmente jogadas fora ou esquecidas como panos velhos
corroídos pelo tempo; tudo estava fresco demais para isso. As promessas foram
degoladas e rasgadas com vigor e ódio. Como aquele amor que parecia real, que
parecia palpável, que parecia sincero se transformou em tanta discórdia e dor
de uma hora para outra?!
-
Eu juro que vou fazer de tudo por esse amor – ambos
juraram; tudo era possível enquanto estavam nus sob a cama com suas peles se
roçando. Reforçaram o juramento de nunca mentir ou omitir algo um ao outro
enquanto a manhã lá fora se arrastava como o despontar de um novo horizonte em
suas vidas. Eles haviam divido medos e sonhos, anseios e objetivos um com o
outro. Tudo havia se comprovado um grande engano e devaneio pueril.
-
Eu tremo só de pensar em te perder...
O baque foi forte
demais para a sonhadora Joana. Por mais melodramático que pareça, ela não
conseguia comer ou se concentrar direito em nada. Pouco a pouco as coisas iriam
ser digeridas, talvez um pouco à força, mas devagar tomariam seu percurso
natural de conformidade. Até seu telefone tocar numa noite chuvosa. Era João.
Havia apenas um assunto ainda pendente entre eles, mas que podia ser resolvido
por intermédio de outros meios. Um e-mail ou mensagem de celular seria
suficiente, mas o telefone insistiu em tocar mais uma vez. Ela não queria falar
com ele, era doloroso e desnecessário; ainda assim atendeu como se tivesse
peito suficiente para escutar a voz de alguém que em tão pouco tempo lhe
causava tanto estrago.
O tom de ambos não foi
amistoso. O estômago da jovem revirava conforme a conversa avançava, e com os
esclarecimentos vindouros seu coração sangrava rarefeito. João com naturalidade
confirmou que ele a ex estavam ensaiando reatar o namoro, que ele tentara se
enganar e Joana havia sido uma opção como tapa buraco. Ela mal conseguia
acreditar... A falta de tato e de consideração por parte dele consumiam-na
internamente. Ao menos todos estavam felizes; sua família por vê-los separados,
a ex e ele por estarem juntos novamente. Ele nunca fora merecedor de seu amor.
Após encerrar a ligação
para nunca mais, ela fumou um cigarro, e outro, pensando o quanto fora trouxa. Ela
havia participado de uma história fictícia, e se perguntava como alguém podia brincar
com os sentimentos alheios de forma tão egoísta e mesquinha daquele jeito. Era um
aprendizado a mais para ela guardar em sua caixinha de “olha como é a vida, não cai mais nessas”... Estava doendo, mas ia
passar. Ela gostaria que aquilo tudo fosse apenas um grande mal entendido, mas
não era. As pessoas mentem e enganam todos os dias; alguns verdadeiros
jogadores profissionais. Tudo ficaria bem a partir dali com as máscaras ao chão,
e ao menos por isso ela sentia-se aliviada. Mesmo amando-o, ele nunca mais
ouviria isso de sua boca. E com a certeza de uma alma em chamas, Joana
despediu-se do rastro de uma mentira amarga. Enfim, tudo acabara.